by - 08:05

Um sonho possível?  Editora Mulheres e o feminismo editorial no Brasil

A Editora Mulheres foi fundada em 1995 por iniciativa de três professoras aposentadas do curso de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Zahidé Lupinacci Muzart, Elvira Sponholz e Susana Funck, especialistas em autoria feminina e vinculadas à linha de pesquisa “Mulher e Literatura” da ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística). O primeiro título do catálogo, publicado em outubro de 1996, Mulheres Ilustres do Brasil (1899), edição fac-símile, da escritora baiana Ignez Sabino (1853-1911), deixou patente o vínculo da editora à produção de autoria feminina brasileira do século XIX, bem como o compromisso com o resgate de nomes femininos na literatura nacional e internacional, que demonstra o papel crucial dessa editora para a circulação dessas obras, bem como para a promoção da igualdade de gênero. 
Embora a sua vida não tenha sido longa, com aproximadamente duas décadas de atividades, a casa editorial conseguiu resgatar nomes fundamentais da literatura feminina nacional e impulsionou uma série de pesquisas acadêmicas sobre a atuação das mulheres, em diversos campos das ciências humanas, lançando mais de 90 títulos desde a sua criação, esses livros tornaram-se raros e dificilmente encontrados em sebos e bibliotecas.
A dificuldade nos mostra a relevância desse projeto editorial e a importância que ele tenha continuidade para promover o desenvolvimento das pesquisas sobre história das mulheres e relações de gênero, como argumentam Gabriela Trevisan, mestranda em História Cultural na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Luna Ribeiro Campos, doutoranda em Sociologia na mesma instituição, ambas dedicadas ao estudo de escritoras e pensadoras do século XIX, que evidenciaram o papel essencial dos títulos da Editora Mulheres para delinear as problemáticas de suas pesquisas, que apenas puderam se concretizar a partir do acesso às obras publicadas por Zahidé Muzart.
Para a historiadora Gabriela Trevisan, que estuda a escritora carioca Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) “as publicações da Editora Mulheres são extremamente essenciais para minha pesquisa e para o resgate de diversas escritoras do século XIX”. Ademais, para Trevisan, Zahidé Muzart promoveu a circulação de muitas publicações conhecidas pelo público dos séculos XIX e início do XX, bem como obras póstumas não publicadas à época, que demonstram o trabalho de pesquisa de Zahidé Muzart.  Segundo a socióloga Luna Ribeiro, pesquisadora da trajetória e das obras da pensadora franco-peruana Flora Tristan (1803-1844), sua pesquisa de doutoramento apenas foi possível por conta da tradução do livro Peregrinações de uma pária, (2000), que teve sua primeira e única edição pela Editora Mulheres.
Segundo Zahidé Muzart, no artigo “Histórias da Editora Mulheres” (Revista Estudos Feministas, 2014), o grupo originalmente composto por três pesquisadoras “se dissolveu por razões várias e pessoais”, por isso, ela continuou sozinha na empreitada editorial cheia de percalços, tais como: a inexistência de reedições dos livros escritos no século XIX, a falta de verba, as dificuldades em atualizar a língua portuguesa, revisar e distribuir os títulos - considerando que a Editora Mulheres era uma micro editora com um catálogo altamente especializado.
O catálogo da editora reúne títulos sobre literatura de autoria feminina, história das mulheres e estudos de gênero. Esses livros são divididos em seis coleções: Romance; Poesia; ViagemCartasFeministasEnsaios; além de índices bibliográficos e obras de referência. Com o principal objetivo de resgatar a produção de escritoras brasileiras do século XIX e início do XX, a Editora Mulheres destacou-se reeditando romances de notáveis escritoras como Ignez Sabino (Lutas do Coração); Maria Benedicta Camara Bormann [Delia] (Aurélia, Duas Irmãs e Lésbia), Maria Firmina dos Reis (Úrsula), Emília Freitas (A Rainha do Ignoto), Carmem Dolores (A Luta), Julia Lopes de Almeida, (com dez títulos publicados), entre outras autoras nacionais e internacionais.
 Mesmo considerando sua alta importância e pioneirismo, a Editora Mulheres teve seu trabalho interrompido após a morte de Zahidé Muzart, em 2015. A doutora em Letras Valéria Andrade, Professora Adjunta do Centro de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido da Universidade Federal de Campina Grande, que foi orientanda de Zahidé Muzart no início dos anos 1990, nos conta, emocionada, “a editora fechou suas portas após o falecimento da Zahidé, de tão saudosa memória, pois os familiares não se motivaram a dar continuidade ao sonho tornado verdade por ela. Uma lástima, para usar uma expressão bem dela quando se sentia triste por alguma situação mal conduzida e mal resultada”.
Ludmila de Souza Maia, doutora em História Social pela UNICAMP, e pela Rice University (2016), com estágio doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França, pondera que os textos da Editora Mulheres foram fundamentais para o início de sua pesquisa de doutorado e “fizeram o diferencial para que eu conhecesse o campo de estudo de mulheres escritoras no país”. Maia também destaca a importância dos dicionários de escritoras do século XIX e XX publicados pela editora, que compõem fontes de referências riquíssimas para pesquisadores dessa área. 
No catálogo da Editora Mulheres, publicado em novembro de 2015, encontramos uma carta comovente, junto com um apelo: “Enquanto a dor não nos permite uma reflexão menos esmaecida sobre a Editora Zahidé (ou) a Zahidé Editora, ajudem-nos a perpetuá-la. Sim, a perpetuar a Zahidé Editora e a Editora Zahidé que, juntas, formam a Editora Mulheres”. Atualmente, alguns desses títulos editados por Zahidé Muzart encontram-se disponíveis em sebos espalhados pelo Brasil. O Sebo Cia do Saber, de Florianópolis, Santa Catarina, concentrou por aproximadamente dois anos, entre 2017 e 2018, os poucos livros restantes do acervo da Editora Mulheres. Todavia, o acesso aos parcos títulos ainda existentes é muito dificultoso, já que a maior parte está esgotada, como afirmam Luna Ribeiro e Gabriela Trevisan, que relatam a ausência desses títulos tão necessários às suas pesquisas.

Anna Faedrich, especialista em literatura brasileira e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), destaca a importância crucial da editora para o questionamento da formação de nosso cânone literário, notadamente masculino e questiona “A pergunta é: o que aconteceu com essas obras e com essas mulheres escritoras? Por que nunca tivemos acesso a essa produção literária? O que explica a repercussão e a visibilidade que elas tiveram à época, e o seu gradual desaparecimento?”. 
Para o desenvolvimento de suas pesquisas, que resultaram na publicação de dois volumes pela Gradiva Editorial, em parceria com a Fundação Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), Faedrich empreendeu um grande esforço de contato com familiares das escritoras Narcisa Amália (1856-1924) e Albertina Bertha de Lafayette Stockler (1880-1953), demonstrando a necessidade de subterfúgios para suprir a ausência de edições dos livros escritos por essas autoras, que sofreram o processo de apagamento da história literária nacional: “Em relação às oitocentistas, muito do material que consegui foi graças ao contato com a família. No caso da Albertina Bertha, foi sua bisneta, Beth Stockler, quem me abriu as portas, no sentido de disponibilizar obras raras da autora, como é o caso dos livros Estudos, 1ª série (1920), e Estudos, 2ª série (1948).” Para os estudos sobre Narcisa Amália, a pesquisadora teve contato com sua bisneta Nilza Ericson, até o momento desconhecida pelos biógrafos da poeta.  O breve relato de Faedrich nos dá uma amostra dos desafios encontrados pelas pesquisadoras dedicadas às escritoras brasileiras do século XIX, aumentando nossa admiração e profundo respeito pelo trabalho de Muzart e o significado político, social e cultural da Editora Mulheres.
Contudo, após a edição dessas duas obras organizadas por Anna Faedrich (a publicação do romance de Albertina Bertha, Exaltação em 2015 e o livro de poesias Nebulosas, de Narcisa Amália, em 2017), a Gradiva Editorial não continuou com a série dedicada à escrita de autoria feminina, apesar do trabalho de alta qualidade e importância realizado pela pesquisadora: “Como reeditei dois livros (Albertina Bertha e Narcisa Amália) pela Gradiva Editorial, sondei a possibilidade de a editora dar continuidade ao projeto de Zahidé. Entretanto, o perfil da editora é outro”.
Infelizmente, não encontramos no Brasil uma editora que se equipare ao trabalho outrora realizado por Zahidé Muzart. Notadamente, ainda que possam existir alguns títulos sobre autoria feminina, feminismo e gênero, dispersos em catálogos de outras editoras, não há o compromisso expresso com o feminismo editorial praticado pela Editora Mulheres e Zahidé Muzart, promovendo a circulação de pesquisas de suma importância para o avanço e divulgação desses temas no Brasil.
Valéria Andrade, dedicada ao estudo da produção teatral de brasileiras do século XIX, como Josephina Alvares de Azevedo (1851-1913) e Maria Angélica Ribeiro (1829-1880) abordadas nos títulos da Editora Mulheres, Índice de Dramaturgas Brasileiras do Século XIX (1996) e O Florete e a Máscara: Josefina Álvares de Azevedo, dramaturga do século XIX (2001), exemplifica esse ponto ao afirmar a imensa importância da Editora Mulheres para a promoção da circulação de suas pesquisas  sobre as mulheres que se dedicaram à escrita teatral no século XIX brasileiro e, acrescenta,  “se não resultou em impactos mais significativos, terá sido pelas contingências discriminatórias ainda incontornáveis do nosso mercado editorial.”
Há uma grande lacuna e um saldo negativo para muitas pesquisadoras dedicadas à literatura de autoria feminina, à história das mulheres e à questão de gênero no país diante da ausência de editoras especializadas na temática. Diante disso, quais seriam as alternativas?  
Ludmila Maia lança a hipótese de que: a UFSC e sua editora poderiam assumir o projeto da Editora Mulheres, embora, na situação atual, isso parece bem difícil dada a escassez de recursos e a falta de vontade política. Contudo, a UFSC seria a mais indicada devido a solidez da área de estudos de gênero que possuem.”  Anna Faedrich defende uma ação coletiva, ao declarar que poderíamos promover, em conjunto, algo mais democrático, com acesso livre e on-line o que se mostra interessante e promissor, ao alimentar-se de um feminismo editorial democrático. Sua proposta seria organizar um projeto para digitalizar essas obras que já se encontram em domínio público e revela: “Estamos – Laila Correa e Silva [doutoranda em História Social na UNICAMP], Gabriela Trevisan, Juliana Santos [doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS] e eu – sondando a viabilidade disso. É importante que os leitores não tenham dificuldades em encontrar essas obras, que elas não se tornem “obras raras”, e que elas possam, aos poucos, ir ganhando espaço nos meios oficiais (aulas de literatura, livros didáticos de literatura, histórias da literatura, dissertações e teses, etc)”.  
Esse parece ter sido o propósito original de Zahidé Muzart e seu legado precisa ter continuidade, de alguma forma, como revelou Anna Faedrich e todas as pesquisadoras e professoras mencionadas que se dedicam ao estudo da escrita de autoria feminina no século XIX e pretendem, com o seu trabalho, lançar luz sobre a agência de mulheres escritoras, pensadoras e precursoras de um legado cultural, político e social que se perpetuou para além do século XIX.
  

*Por Laila Correia e Silva, doutoranda em História Social e aluna de Estudos Literários do IEL/Unicamp

You May Also Like

0 comentários