Joyce por inteiro:
Caetano Galindo conversa sobre a nova tradução de Dublinenses, seus próximos projetos e o panorama cultural-literário brasileiro
Caetano Galindo conversa sobre a nova tradução de Dublinenses, seus próximos projetos e o panorama cultural-literário brasileiro
A nova edição de Dublinenses,
da Companhia das Letras, é mais um
passo no projeto de tradução completa da obra de James Joyce pelo escritor e
professor Caetano Galindo, da Universidade Federal do Paraná. Depois de verter para o português Ulysses, o livro mais famoso do autor
irlandês, em tradução premiada com o Jabuti 2013, ele continua
a aumentar o seu legado joyceano. O próximo desafio deverá ser traduzir Finnegans Wake, a obra mais ambiciosa de Joyce, considerado por muitos estudiosos como intraduzível, por
apresentar palavras que misturam diversos idiomas, neologismos e trocadilhos.
“Se eu tenho que aprender a ‘ler’ aquele livro, imagine ‘traduzir’!”, brinca
Galindo, em entrevista concedida ao blog.
Munida de um rico aparato crítico, a tradução de Dublinenses confere aos leitores de língua portuguesa a
oportunidade de vivenciar a Dublin do final do século XIX e do começo do século
XX, encarnada nos 15 contos que compõem o livro. Isso além de permitir observar, por meio de seus
personagens, algumas das grandes questões do comportamento Humano, “com
maiúscula mesmo”, como Galindo afirma.
Apesar do livro ser considerado o mais acessível do autor irlandês, ele abriga “o trecho de tradução em prosa que mais deu trabalho” até agora na
carreira de Galindo.
Mas as dificuldades não parecer assustar o professor da federal do Paraná, responsável por traduzir outros autores considerados “espinhosos”, como David
Foster Wallace e Thomas Pynchon. Junto com o seu irmão, Rogério Galindo, ele também foi
finalista do Prêmio Jabuti de 2016, com a tradução de Ossos de Eco, de Samuel Beckett (Biblioteca Azul, 2015). Além
disso, seu livro de contos, Ensaios sobre
o Entendimento Humano (Biblioteca Paraná, 2013), venceu o Prêmio Paraná de
Literatura no ano de sua publicação.
Em que medida o cotejo com as demais traduções
de Dublinenses influenciou os
caminhos tomados nesta nova? O que a distingue das anteriores?
Olha. Muito pouco. Eu
tenho lá no fundo da memória a lembrança do efeito geral que me causou a
tradução do Hamilton Trevisan. Quantos? Vinte e cinco anos atrás? Mas na
verdade não me dediquei a cotejo e não consultei traduções mais recentes. Eu
tenho também algum contato com a segunda tradução do José Roberto O’Shea, que
consultei para preparar aulas logo depois de seu lançamento. Mas, de novo, na
hora de sentar para trabalhar, eu quase intencionalmente abro os olhos só para
o original e para as minhas escolhas. Até por isso, deixo para os leitores
dizerem o que a minha tradução tem de diferente. No entanto, ela tem um aparato
crítico maior que o das outras, com notas de rodapé, prefácio, cronologia do
autor e da obra… E, de minha parte, posso dizer que ela
contém, na sua última página, o trecho de tradução de prosa que me deu mais
trabalho, e com o qual me detive mais longamente na minha carreira.
Traduzir e estudar Joyce também é traduzir e
estudar a Irlanda. Como é sua relação com a cultura e a história irlandesas?
Ela me veio em grande
medida como você descreveu na pergunta. Através da obra de Joyce. Foi sempre
ele que me levou a querer estudar mais, conhecer o processo da luta pela independência,
me familiarizar com a história de Parnell [Charles
Parnell, importante figura política de ascendência irlandesa do século XIX],
com os conflitos religiosos… Alguém criado, como eu, no
fim dos anos 70 e nos anos 80, tinha, claro, certa familiaridade com a disputa
entre católicos e protestantes, com a ação do IRA, através do cinema e mesmo da
televisão. Mas meu envolvimento
maior se deve todo a Joyce. Mesmo na única vez em que eu estive em Dublin (em
2004) eu me sentia muito mais visitando o cenário de um livro do que uma
cidade…
De que maneira o panorama político, religioso e
social da Dublin de Joyce pode ser relevante aos leitores brasileiros do século
XXI?
Não sei se terá
grandes ressonâncias diretas, nem se deveria. Grandes livros partem por vezes
de coisas muito pontuais, muito historicamente demarcadas em uma dada
sociedade, em um dado contexto. Mas o que de fato os tornou grandes, e garante
sua repercussão imediata, tende a ser o quanto eles conseguiram extrair de
humanamente mais amplo, mais profundo, de cada uma dessas questões. É daí que
surge a tão comentada “universalidade” dos clássicos. Mais do que Parnell, o
que se discute é a figura do líder, a figura do homem falível, do homem traído,
por exemplo. Eu não preciso ser príncipe herdeiro usurpado num reino
escandinavo para me identificar com os problemas de Hamlet! O interesse de
Joyce sempre foi Humano, com maiúscula mesmo. Quando falava da história
colonial da Irlanda ou da masturbação de um adolescente pernóstico. E, para
quem sabe ler, esse interesse garante uma afinidade muito grande daqueles
livros com a gente, com o nosso tempo, com qualquer tempo.
Você termina a nota do tradutor em Dublinenses com uma proposição: “vamos
ao projeto Finnegans Wake”. O que a
imensidão deste desafio representa na sua carreira e nos paradigmas da obra
joyceana?
Na minha carreira
seria uma espécie de... (tenho até receio de dizer) culminação? Seria uma
espécie de passo mais largo e definitivo. Para a obra joyceana, significa
pouco. Para a recepção de Joyce no Brasil tem lá seu peso, afinal, seria a
possibilidade de o leitor acessar toda a obra publicada de Joyce na tradução de uma mesma pessoa (devo ainda
no começo de 2019 entregar à editora minha tradução de Exiles e dos dois livros de poemas de Joyce), seguindo um mesmo
“projeto”…
E para a tradução em si, o que esta empreitada
representaria?
Para a tradução em si
a coisa é bem mais complicada. O Finnegans
Wake é não só um livro estranho, mas, insisto em dizer, um livro que cria
novas e inesperadas maneiras de ser estranho. Sem querer alongar demais essa
resposta, basta dizer que o livro, em seus momentos mais típicos, raramente
“quer dizer” alguma coisa. Suas palavras, suas frases criam possibilidades de
leitura (algumas jamais suspeitadas por Joyce, inclusive) sem necessariamente
determinar qual delas é central. Não é nada infrequente que alguém que leia o Wake, e se sinta profundamente
emocionado por alguma passagem, possa dizer mais ou menos bem o que está
acontecendo ali, mas não consiga parafrasear, não possa repetir o que o texto
“disse”. Porque ele não “disse” de fato aquelas coisas. Ele as fez existir como
possibilidades… Estranho, né? Mas extremamente poderoso. E como traduzir uma
coisa que os falantes “nativos” não sabem nem concordar se quer dizer A, B ou
BA? Como criar algo que “corresponda” a um texto tão inapreensível quanto por
vezes é o texto do Wake?
A parte mais difícil
(e a que toma mais tempo) para se ler o Wake
é determinar o que o verbo “ler” vai querer dizer ali para aquele livro. Porque
não vai ser a mesma coisa dos outros livros que você leu na vida. Não vai dar
para passar os olhos de uma palavra para outra e ir entendendo, e por vezes
voltando para entender um trecho mais denso… Se você
tentar fazer isso, vai enlouquecer antes da quarta página.
E se eu tenho que
aprender a “ler” aquele livro, imagine “traduzir”!
Também pensa em escrever um livro guia para o Finnegans Wake, assim como fez em Sim, eu digo sim (Companhia das Letras,
2016), no qual conduziu o leitor por cada parte de Ulysses?
Olha… pode ser sim.
Seria a cereja.
Em outras entrevistas, você já mencionou
preferir traduções menos focadas na “fidelidade lexical” ao texto original e
mais vinculadas à “adaptação semântica” entre os contextos linguísticos. Neste
sentido, a criatividade também se faz premente para o tradutor. Como conciliar
técnica e inventividade?
A palavra
“fidelidade”, especialmente, é um verdadeiro campo minado. O que quer dizer “fidelidade
lexical”? Palavra por palavra? Traduzir “black eye” por “olho roxo” é fiel,
apesar de black querer dizer preto?
Desde os primeiros textos que refletiram sobre tradução no Ocidente (desde a
antiguidade latina), os autores sabem que não existe tradução palavra por
palavra. Ela é um objetivo que apenas os leigos defendem. Ou julgam defender.
Porque mesmo em situações em que algo assim seria possível, eles acabariam
preferindo os resultados de um processo mais “holístico”, que encare os
enunciados como unidade, e não as palavras. “Adaptação” é outra palavra
perigosa. E tende a ser um limite que, como tradutores, nós precisamos evitar.
Como diz o grande Paulo Henriques Britto, o objetivo da tradução é permitir que
o leitor que conheça o original e a tradução declare que os dois são a mesma
coisa. Ou, melhor ainda, que permita que o leitor da tradução diga, sem mentir,
que leu o original. Como quando eu afirmo que li A história de Genji, apesar de não saber nem decifrar a escrita
japonesa.
Como alcançar esse efeito?
Essa é a grande
fidelidade que o tradutor deve ao autor, à obra original, aos seus editores,
aos seus leitores e a si próprio. Produzir essa mágica maluca de um texto novo,
num contexto inesperado, que se afirma como “vernáculo” (no nosso caso, como
brasileiro) ao mesmo tempo em que sustenta essa sensação de dar a ler um
original anterior.
E para obter esse
efeito é necessária uma grande dose de criatividade, sim. E ela decorre de uma
responsabilidade. Eu preciso dar “vida” ao texto original. Preciso conferir
beleza, efeito literário, conforme ele solicite a cada dado momento. E a única
maneira de eu simultaneamente estar à altura dessa tarefa e me colocar
humildemente em relação a ela é dar o que eu tenho de melhor. É fazer o
possível para dar de novo essa vida ao original. E isso demanda invenção, jogo
de cintura, flexibilidade, domínio da língua, da tradição e dos recursos de
criação. É essa a criatividade que eu e qualquer tradutor literário defendemos.
Em nome daquela fidelidade.
Ouve-se muitos pesquisadores apontando a
dificuldade de se conseguir financiamento em áreas de pouco impacto
mercadológico. Qual é a sua visão sobre o cenário atual das pesquisas na área
de tradução?
Não sei se essa
pergunta foi elaborada antes ou depois do resultado das eleições presidenciais.
Agora, consumado o fato, só posso dizer que o panorama para toda a área de
pesquisa é obscuro. E que as humanas hão de sofrer os cortes mais pesados, num
governo que se elegeu já colocando professores, intelectuais e escritores não
apenas sob suspeita, mas no lugar do “inimigo”. Só posso imaginar tempos muito
ruins para toda a nossa área, que, ao mesmo tempo, será relevante e necessária
como nunca.
Um fenômeno recente é a proliferação de
leitores comentando literatura nas novas mídias sociais, como o YouTube e o
Instagram. Há a polêmica de que os booktubers
não são aptos a falar sobre literatura, principalmente a respeito dos
clássicos. Por outro lado, muitos consideram importante essa democratização dos
espaços, apostando ainda que isso pode ser um incentivo para que se leia mais.
Qual é o seu posicionamento sobre o tema?
Eu acho sempre bom que
se fale de literatura. Tenho pouco contato com os tais booktubers, mas já vi coisas boas, coisas sólidas e coisas mais
leves e “irresponsáveis” (no melhor sentido). Livros têm que ser lidos. E
comentados. Inclusive os clássicos. Nada, portanto, contra a existência do
fenômeno.
Haveria um lado negativo nesse fenômeno?
O problema, se
problema existe, é o mesmo de outras áreas, no que se refere à bolha virtual
versus o mundo do papel. O problema é quando essa fonte de informação passa a
ser única e definitiva. Porque, pela sua própria natureza, ela tende a ser mais
leve, mais superficial. Ela é, afinal, ou pretende ser, uma empreitada comercial.
E conta com um lapso de atenção bem mais reduzido de parte de seu público. Não
dá para fazer grandes ensaios densos e descomprometidos nessas condições. Mesmo
que as pessoas possam, e queiram. E essas abordagens mais densas têm de
existir, ainda que para um público menor.
Acho que o que a gente
está vendo é um aumento do leitorado, sim, que toma a forma da boa e velha
curva de sino, e então o aumento no “meio” é muito maior, e parece afogar as
margens… Mas as margens (a literatura “para poucos”, por exemplo)
continuam lá. E talvez deva ser
mesmo assim. Mas, reafirmo, se um carinha ou uma menina de 16 anos quiser fazer
um vídeo de 20 minutos sobre sua leitura de Guerra
e Paz, eu, de minha parte, aplaudo.
Em um texto publicado no seu blog no site da Companhia
das Letras, intitulado O fim?, você
escreve palavras duras sobre o momento atual. Entretanto, termina-o com um fio
de esperança. O que esperar deste futuro governo como escritor, tradutor e
professor?
Acho que já disse
acima. Espero repressão da diversidade de pensamento. Espero policiamento
direto e terceirizado, realizado pelas multidões de minions radicalizados e, agora, empoderados. Espero corte de
verbas. Espero até ações mais diretas contra colegas. Meu irmão, jornalista
marcadamente “de esquerda”, acaba de ser demitido depois de publicar um texto
incisivo. Espero mais demissões, espero perseguições. Espero que a gente saia
dessa de pé. Espero que os intelectuais, apesar de sob intenso ataque agora,
mantenham a mente ativa e consigam ajudar o país a superar essa sua crise… Espero…