Crime e Cárcere: Sci-fi nos tempos sombrios
Encarcerados (2018), de John Scalzi, tem a sua narrativa policial
nos moldes já conhecidos de Agatha Christie e Sherlock Holmes; o agente e seu
parceiro desvendando o mistério, e a busca incessante pelo assassino a partir
das evidências encontradas. Mas a obra surpreende ao inserir a investigação do
crime em um mundo futurista, sobrepondo, ou até mesmo mesclando, ficção
científica e trama policial.
Repleto
de robôs e armas tecnológicas, em teoria o universo do romance é mais avançado,
porém, econômica e socialmente,
mais injusto e desigual. Essa característica permite ainda que o autor encaminhe
a história para o subgênero cyberpunk, conhecido por tratar de um mundo
altamente tecnológico, mas com pouca qualidade de vida para determinados povos
não abastados. O enredo se desenrola a partir de um crime ocorrido em um quarto
de hotel. O suposto ator do assassinato está junto da vítima, mas afirma não se
lembrar do que aconteceu. Uma equipe de investigadores (Chris Shane e Leslie
Vann) é chamada para acompanhar o caso, julgando se foi homicídio ou tentativa
de suicídio incriminatória.
Para
a criação de seu livro, John Scalzi inventou uma doença que se assemelha a uma
gripe altamente nociva, a qual ataca o cérebro, forçando a sua transferência
para um robô. Os corpos reais quase inutilizados dos afetados ficam
encarcerados (“Lock In”, do título
original em inglês) ou em berços fechados, sob os cuidados de pessoas
saudáveis. Os infectados são conhecidos por Hadens, os quais, paralelamente à
narrativa do crime, reivindicam seus direitos.
Pela
recorrência do tema do confinamento, o leitor sente a necessidade de refletir
sobre os diversos tipos de “prisão”. Tanto aquela tratada na realidade
ficcional do livro, quanto o aprisionamento sofrido por muitos no mundo real. Este,
aliás, se mostra injusto aos marginalizados, pois há poucas políticas de
inclusão, e elas são falhas, resultando em enclausuramento involuntário
daqueles que mais precisam de apoio. Por exemplo, muitos portadores de
deficiências físicas sofrem limitações e confinamentos pela falta de estruturas
sociais e políticas interessadas em seus direitos de vida. Os Hadens podem ser
lidos aqui também como deficientes marginalizados pela sociedade, encarcerados
pelo sistema científico e político mundial.
De
sua obra socialmente engajada, torna-se possível analisar do mesmo modo, por
intermédio da escrita do autor, sua bagagem cultural. Também em um de seus
últimos livros publicados, Redshirts (2012),
é perceptível o uso de várias referências à cultura de massa e a filmes de
sucesso. Alusões a Star Wars (1977) e até mesmo as típicas piadas sobre o
FBI aumentam o interesse do público pela sua obra, além de suavizar a história.
As escolhas narrativas se mostram certeiras
na elaboração dos perfis bastante diversos no vasto “elenco” do livro. É
demonstrado interesse pelos marginalizados, frequentemente esquecidos nas obras
de ficção científica ou até mesmo nas policiais. Há personagens indígenas
norte-americanos, casais homossexuais e também mulheres inspiradoras. Relevante
ressaltar como é bem medido o grau de favoritismo entre Chris, o narrador, e
Vann. Pois esta é extremamente relevante para todo o arco do livro, já que além
de ter um ótimo cargo, o de chefe, é astuta e a voz da razão. Nesse ponto, é
inevitável não lembrar Mad Max: A Estrada da Fúria (2015), o qual
foi aclamado por dar força às figuras
femininas e por lutar contra o machismo atrelado aos filmes de ação. Tanto
a obra cinematográfica quanto a literária apresentam protagonismo masculino, porém
as mulheres se mostram muito mais interessantes ao espectador, por estarem focalizadas,
ou seja, sendo ativas nas narrativas. E também são dadas a elas as cenas com
peso emocional.
Provavelmente por trabalhar como crítico do
meio do cinema, Scalzi, em diversas passagens, utiliza frases de efeitos e recursos que aproximam o
romance da linguagem cinematográfica. O tom subjetivo aparece em alguns trechos, por meio de ações que mesclam
realidade e imaginário. O filme Gabinete
do Dr. Galigari (1920) compreende
cenas com a finalidade de
confundir o espectador; nele, não há clareza sobre se o que é mostrado retrata
a maldade de Caligari ou se são apenas devaneios de Cesare, o protagonista. O
uso de alguns bordões como alívio cômico, revistos e revisitados em todas as
produções sobre super-heróis atualmente, também está presente. Além disso,
muitos fragmentos do romance
parecem ter sido escritos já pensando em uma adaptação para o cinema. Há, por
exemplo, o emprego da
progressão da montagem norte-americana nas cenas de ação, como os cortes rápidos, utilizados em momentos de
frenesi. O autor lança mão também de lutas
coreografadas, as quais, narrativamente, já formulam na cabeça do leitor como
poderiam ser executadas, lembrando os grandiosos embates nos dois filmes de Kill Bill (2004), ou nas produções estreladas
por Jackie Chan.
Apesar da ótima construção literária, o autor
peca nas páginas finais, acelerando demais a narrativa, até então apresentada
de forma lenta e gradativa. O final do romance é satisfatório, porém o aumento
da velocidade no desfecho da trama passa a impressão de que o autor foi
pressionado pela editora para lançar seu livro o mais rápido possível. Vencedor
dos prêmios Hugo e Locus Awards, John Scalzi mostra mais uma vez, com Encarcerados, por que é considerado um
dos grandes escritores de ficção científica atualmente. A obra, que já se
tornou best-seller, ganhou uma continuação: escrita e lançada este ano nos
Estados Unidos com o título de Head On,
ela ainda não tem lançamento previsto no Brasil.
*Por José Henrique Tobias Pereira
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