O mundo tolkieniano
Explicando Tolkien, de Ronald Kyrmse, é o livro indicado
para todo amante da obra do escritor de O
Senhor dos Anéis (1954-1955). O autor reuniu em uma única produção toda a
informação necessária para que o leitor iniciante seja capaz de compreender o
processo de criação de um universo fantástico, em especial o criado por
Tolkien.
Kyrmse deixa claro, desde as primeiras
páginas, seu apreço pela construção do Mundo de Arda. Por isso, neste exemplar,
sempre se destacam os pontos fortes dessa composição, como a estruturação linguística
e imagética do cenário, e as dimensões, que Kyrmse afirma serem três: diversidade, profundidade e tempo. Sobre
diversidade, ele fala da variedade de
raças, vocabulário, gramática e fonologia. Já sobre profundidade, destaca as lendas de cada povo, costumes, geologia e
vestimentas, por serem aspectos minimamente detalhados. Sobre a dimensão do tempo, explica que todo cenário descrito
por Tolkien não está lá apenas como obstáculo ou vista admirável. O rio, colina
ou floresta que aparece em O Senhor dos Anéis está em Silmarillion (1977), assim como em
outros livros, constituindo a história daquele local e marcando a cronologia de
suas obras, por isso “é complexo o ‘ofício’ do autor que pretende convencer-nos
da realidade” (p. 23). Foi preciso que Tolkien passasse inúmeras noites em
claro fazendo revisões, lutando para “autenticar” seu mundo. Essas três
dimensões, complexas e diferentes entre si, são o que confere à criação de
Tolkien uma maior semelhança com o nosso mundo primário de todos os tempos.
Após mais de vinte anos de pesquisa, lendo e
relendo O Hobbit (1937), O Senhor
dos Anéis e Silmarillion,
entre outras obras, Kyrmse sintetizou em 180 páginas vários fatores que
tornaram possíveis a existência do Mundo de Arda. Por meio de Explicando
Tolkien, o leitor entra em contato com várias facetas da vida do escritor
que influenciaram sua produção, como a sua educação em colégios religiosos, a
sua vida acadêmica, a sua carreira, seus trabalhos que foram rejeitados e até
mesmo as suas relações amorosas. Além da vasta pesquisa realizada por Kyrmse,
temos ainda acesso às cartas deixadas por Tolkien, várias delas sobre sua
criação linguística e sua opinião a respeito da própria obra.
A habilidade de criar línguas complexas, com
fonologia e gramática particulares, é o maior destaque presente nas obras de
Tolkien. O Quenya (alto élfico) e o Sindarin (élfico cinzento) são as duas
línguas mais bem definidas, tendo como base o finlandês e o galês,
respectivamente. Outras línguas estão presentes em suas histórias, no entanto
poucos registros são apresentados na obra ou nas cartas do autor. Por isso, uma
parte do livro de Kyrmse é dedicada especialmente à apresentação dessas línguas
com grafia e pronúncia próprias.
C. S. Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia (7 vols. 1950-1956), foi um dos grandes
amigos de Tolkien, tendo sido inclusive o primeiro a resenhar O Hobbit. Muitos
chegaram a comparar a produção de ambos, e de fato sabemos que existiu certa
competição, se não atrito, entre os companheiros literários. Embora esta
amizade não seja o foco do livro, Lewis não deixa de ser citado. Desse modo,
aprendemos que o amigo foi muitas vezes o único ouvinte e crítico durante a criação
de O Senhor dos Anéis. E mais: Tolkien não era recíproco na crítica ao
trabalho de Lewis, deixando em cartas que nunca fora fã das “alegorias”
religiosas.
Outro ponto abordado no livro é a dificuldade
da tradução da obra de Tolkien. O próprio Kyrmse foi revisor e consultor das
traduções brasileiras de O Senhor
dos Anéis, O Hobbit e Silmarillion,
além de ter traduzido Contos Inacabados (2002):
A tradução da obra tolkieniana é imprecisa como todas, e talvez mais difícil do que muitas. Vêm sempre à mente as famosas palavras traduttore, traditore (“tradutor, traidor”). Mas o caminho é pelo menos abrandado pelas orientações que o próprio autor nos legou. (p. 161)
O mais incrível do trabalho de Kyrmse não
está nos fatos que ele expõe, mas na vida dedicada ao estudo de Tolkien. Graças
a esse empenho, o autor conseguiu descrever a complexidade da criação da
linguagem, da fauna, da flora, dos costumes, dos calendários, da disposição
geográfica, da passagem do tempo e de muito mais que foi elaborado pelo escritor.
Desde
2001 fomos agraciados com a melhor versão adaptada dos filmes da trilogia do
Anel. A adaptação dirigida por Peter Jackson, também grande fã de Tolkien, é
comentada por Kyrmse, que analisa as diferenças entre os livros e os filmes,
assim como descreve os defeitos e qualidades das adaptações mais antigas. Sem
dúvida, o autor sabe direcionar o leitor para todas as dificuldades de um
processo criativo e artístico: o filme não
é o livro.
Mais do que tudo, este trabalho existe não
apenas para saciar a sede de conhecimento sobre a criação do Mundo Secundário,
a metodologia e a mitologia. Mas para que cada vez mais leitores busquem os
livros de Tolkien, vejam os filmes e entrem em contato principalmente com O Senhor dos Anéis, o best-seller que, de acordo com Kyrmse, vendeu menos apenas que a Bíblia.
*Por Heloiza Lopes de Oliveira
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