Riobaldo entre as
veredas da filosofia e da poesia
Quem já assistiu ao programa “Ensaio”,
da TV Cultura, certamente notou o modo peculiar como acontece o diálogo entre o
entrevistador e o artista convidado. O telespectador não ouve as perguntas do
entrevistador, mas pode inferi-las pelas respostas do entrevistado, de modo que
a conversa se aproxima mais de um monólogo do que de um diálogo.
Algo análogo acontece em Grande
Sertão: Veredas (1956), do escritor mineiro João Guimarães Rosa. No livro,
o narrador-personagem, o ex-jagunço Riobaldo, conta sua vida a um viajante que
está de passagem pela sua fazenda sobre as questões que o preocupam como, por
exemplo, a existência ou não do diabo, as manifestações no espírito humano do
bem e do mal, a força do amor e do ódio. A vida do personagem é contada com
muitos detalhes e muitas indagações filosóficas - em forma de aforismos. O lema
cartesiano da dúvida transforma-se em “Quem desconfia, fica sábio” (p
122), na linguagem sertaneja de Riobaldo.
O leitor que não está acostumado com o
estilo do autor terá dificuldade em mergulhar no romance. Sua linguagem pode
ser considerada, pois, um amálgama de regionalismo (a história se passa no
norte de Minas Gerais e Sul da Bahia) com neologismos. Algo parecido ocorre em Sagarana,
livro de estreia do autor. Nele, o próprio título é a junção de Saga (uma
história contada) com o sufixo tupi –rana (que significa “o que poderia ser
verdadeiro”).
Além da linguagem difícil, outro
obstáculo para leitura do romance é o seu aspecto digressivo. Como se quisesse
certificar-se da atenção do ouvinte, o narrador vai e vem em sua narrativa. Até
que chega na cena da travessia do Rio São Francisco, na página 92. Nesse
trecho, ele lembra de um importante acontecimento de sua infância, quando pedia
esmola no porto para cumprir a promessa que sua mãe fizera. Nesse dia, ele
conheceu um menino que marcou para sempre a sua vida. Esse menino era o
Reinaldo, que anos mais tarde pedirá para o amigo chamá-lo de Diadorim, quando
os dois, já adultos, estivessem a sós. Depois desse episódio o romance ganha
maior linearidade, ainda que conserve um pouco de digressão.
A partir daí, poderemos acompanhar uma
mudança brusca que aconteceu na vida do protagonista ainda criança: a morte de
sua mãe. Será depois de perdê-la que ele vai morar com o padrinho, Selorico
Mendes, onde recebe as primeiras instruções:
Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. (Pág.24)
O sertanejo é, portanto, um homem letrado. Ao longo do romance faz perguntas de cunho existencialista, ao modo de um filósofo. Provoca o interlocutor com suas ideias sofisticadas: “O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém! ”. (Pág. 25)
Em um determinado momento, o jagunço lê o livro Saint-Clair das Ilhas,
obra que na literatura brasileira aparece sendo lida por personagens de outros autores,
por exemplo, em Quincas Borba, de Machado de Assis. (Meyer, 1998).
Além do ensino elementar que tivera, portanto, o narrador também era dado à
leitura de clássicos:
O dono do sítio, que não sabia ler nem escrever, assim mesmo possuía um livro, capeado em couro, que se chamava o “Senclér das Ilhas”, e que pedi para deletrear nos meus descansos. Foi o primeiro desses que encontrei, de romance, porque antes eu só tinha conhecido livros de estudo. Nele achei outras verdades, muito extraordinárias. (Pág.312)
Sempre atento aos detalhes de sua vida, Riobaldo repensa nos principais episódios da sua vida e sempre tirar novas conclusões acerca de questões que o incomodam. Ele tenta chegar ao significado de cada coisa. O narrador se questiona sobre o fatalismo, por exemplo, e se ele e Diadorim nasceram para matar a personagem Hermógenes. Além disso, ele narra toda sua vida para perguntar ao interlocutor o que ele acha disso tudo; se acha que o diabo existe mesmo e, uma vez existindo, se ele próprio, de fato fez um pacto. Pergunta que ele mesmo responde na última página:
Amável o senhor me ouviu, minha ideia
confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano,
circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for…
Existe é homem humano. Travessia. (Pág. 492)
Além de filósofo, o nosso narrador também é poeta. Ao longo do livro,
aparece muitas vezes uma canção que ele ouviu na noite em que, na casa do
padrinho, viu pela primeira vez um bando de jagunços. Essa canção ficou em sua memória
para sempre. Ele a chama “Canção de Siruiz”. Riobaldo explica o alumbramento
que ela despertou em seu ser
O que me agradava era recordar aquela
cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada, ah, sim. Simples
digo ao senhor: aquilo molhou minha ideia. Aire, me adoçou tanto, que dei para
inventar, de espírito, versos naquelas qualidades. Fiz muito, montão. (Pág.109)
Ao longo do romance aparecem muitos
versos, uns de própria autoria de Riobaldo, outros que ele ouviu durante a sua
vida e nunca mais esqueceu. O narrador relembra algumas ocasiões que surgiram
os versos e, ao modo dos rapsodos, recita-os para seu ouvinte:
Hei-de às armas, fechei trato
nas veredas com o
Cão.
Hei-de amor em seus
destinos
conforme o sim pelo
não
Em tempo de vaquejada
todo gado é barbatão:
deu doidera na boiada
soltaram o Rei do
Sertão….
Travessia dos Gerais
tudo com armas na
mão…
O Sertão é a sombra
minha
e o rei dele é o
Capitão (Pág. 378)
Não surpreende que Riobaldo seja um poeta cheio de lirismo. O próprio
Guimarães Rosa publicou uma coletânea de versos, “Magma”, com a qual ganhou o
prêmio “Academia Brasileira de Letras”, em 1936. E a poesia em “Grande Sertão:
Veredas” não está somente na forma de
versos. A linguagem de todo o livro é extremamente poética. Se ela parece um
empecilho no começo do livro, ao longo da sua leitura se torna seu maior
prazer. Um exercício interessante para perceber a sonoridade do romance seria a
leitura em voz alta, de modo que o aspecto oral da obra ficaria enfatizado. É
como o narrador fala: “a verdade não está nem na saída, nem na chegada: ela se
dispõe para a gente é na travessia”. É um livro para ler e reler várias vezes,
a cada nova leitura o leitor pode se encantar com a beleza do universo rosiano.
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